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Embora j� haja movimentos para anular a Reforma da Previd�ncia, aprovada pela C�mara em 2003, a Suprema Corte fornece subs�dios jur�dicos para que norma seja questionada na Justi�a?

No julgamento da A��o Penal 470, pelo menos oito dos 10 ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) chegaram a dizer expressamente que houve compra de votos na C�mara dos Deputados em meio ao not�rio esquema do mensal�o. Com a maioria formada, cai por terra a tese comum � defesa dos r�us de que o dinheiro movimentado era fruto de caixa dois eleitoral e destinado aos aliados pol�ticos para saldar d�vidas de campanha. Se a mais alta corte do pa�s chegou ao consenso de que a consci�ncia de parlamentares foi posta � venda em uma balc�o de neg�cios, a atividade legislativa produzida na C�mara durante esse per�odo sai maculada? � poss�vel questionar na Justi�a a validade das propostas aprovadas com um suposto �empurr�ozinho� do �valerioduto�?

A quest�o da impugna��o das vota��es j� foi posta em discuss�o no STF mais de uma vez. O ministro Celso de Mello afirmou que atos legislativos derivados da corrup��o podem sim ser questionados judicialmente, por �configurar inconstitucionalidade formal�. �� o mesmo que ocorre com um juiz corrupto, no qual suas senten�as podem ser anuladas mesmo que estejam em tr�nsito julgado�, comparou o ministro mais antigo da Corte. O revisor Ricardo Lewandowski tamb�m j� se manifestou sobre o assunto. �Se este plen�rio decidir com tr�nsito em julgado que houve compra de consci�ncias, ent�o surge a quest�o da nulidade�, observou.

A den�ncia oferecida pelo MPF (Minist�rio P�blico Federal) busca demonstrar que h� uma rela��o temporal entre as vota��es na C�mara e os saques realizados no Banco Rural. Segundo a acusa��o, o volume dos pagamentos a deputados foi maior nas v�speras de vota��es importantes � em especial, as que aprovaram a Reforma da Previd�ncia e a Reforma Tribut�ria.

Entre os 40 r�us iniciais do mensal�o, apenas 7 eram, � �poca, deputados federais de partidos da base aliada ao PT � Roberto Jefferson e Romeu Queiroz, do PTB; Jos� Borba, do PMDB; Valdemar Costa Neto e Bispo Rodrigues, do PL (atual PR); e Pedro Corr�a e Pedro Henry, do PP. Embora muitos deles exercessem papel de lideran�a na bancada de suas legendas, os condenados representam apenas sete parlamentares em um universo de 513 deputados federais que comp�em a C�mara.

Por esse motivo, os juristas ouvidos pelo �ltima Inst�ncia s�o c�ticos quanto � possibilidade efetiva de anular as leis. �Se considerarmos que a vota��o desses r�us constituiu ato viciado, eles s�o em n�mero suficiente para invalidar a aprova��o?�, indaga Oscar Vilhena, diretor do curso de Direito da FGV-SP. Na opini�o do professor, s� seria poss�vel impugnar os atos se ficasse comprovado que o voto dos corrompidos foi essencial para fazer passar o projeto no plen�rio; isto �, nos casos em que a aprova��o ocorreu por uma margem muito pequena.

[“Comprou-se meia d�zia de pessoas e as reformas est�o tisnadas pelo v�cio do plen�rio? E n�o se comprou nenhum senador?”, indaga Lewandowski, um dos �nicos a recha�ar a compra de votos]

Adin no Supremo
� o instrumento jur�dico da Adin (A��o Declarat�ria de Inconstitucionalidade) que provocaria o Supremo a debater em plen�rio a validade das leis aprovadas durante o mensal�o. Este tipo de a��o judicial exige a manifesta��o direta, e definitiva, do STF, sem que seja necess�rio passar por inst�ncias inferiores do Judici�rio. Nem todo cidad�o comum � capaz de propor uma Adin na Corte, a Constitui��o Federal de 1988 lista nominalmente quais s�o as entidades dotadas de poder para aparecer como autor de uma pe�a deste tipo. S�o eles: presidente da Rep�blica; governadores; mesas da C�mara dos Deputados, do Senado Federal e das Assembleias Legislativas dos estados; procurador-geral da Rep�blica, OAB, partido pol�tico com representa��o no Congresso, al�m de confedera��o sindical ou entidade de classe.

Ao peticionar uma Adin, o autor da a��o tem, a princ�pio, dois caminhos distintos, conforme explica o professor Thiago Bottino, da FGV-Rio. Primeiramente, seria adotar a via mais �formalista e provar que h� um v�cio na vota��o�. O chamado �v�cio formal� significa apontar que o ato legislativo que originou a norma possuiu uma �deforma��o� insan�vel em uma das v�rias etapas espec�ficas naturais da sua tramita��o � para um projeto de lei ser aprovado � preciso que ele seja proposto, que passe por diversas comiss�es, que receba pareceres favor�veis e eventuais emendas, tudo isso antes de ir a plen�rio. No entanto, os juristas j� adiantam que � bem dif�cil provar que houve v�cio no processo, j� que seria necess�rio demonstrar que a constru��o da maioria no plen�rio foi contaminada pela corrup��o.

O segundo caminho consiste em optar por uma vis�o mais geral, argumentando que as aprova��o dos projetos rasgou a Constitui��o Federal ao atentar contra o princ�pio da moralidade p�blica. Bottino tamb�m acredita ser dif�cil convencer o Supremo a anular as normas. �Seria preciso provar que tudo foi fruto de uma negociata�, explica.

Psol
O PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) j� d� sinais de que pretende questionar na Justi�a medidas aprovadas durante o primeiro mandato do ex-presidente Lula. �Se confirmada a tend�ncia manifestada pelos ministros, o processo legislativo que aprovou a Reforma da Previd�ncia estar� contaminado, gerando uma inconstitucionalidade formal na lei�, afirma a assessoria jur�dica do partido. �Haveria um v�cio de legitimidade e uma s�rie de afrontas constitucionais ao processo legislativo�, continua. A dire��o do partido, no entanto, prefere esperar a publica��o do ac�rd�o da A��o Penal 470 para confirmar a posi��o.

Promulgada em dezembro de 2003, a Reforma da Previd�ncia � vista por muitos como um dos primeiros momentos em que se concretizaram diverg�ncias no PT ap�s o partido chegar ao poder. O atual presidente do PSOL , deputado federal Ivan Valente [foto], � �poca parlamentar do PT foi suspenso do partido por ser contr�rio �s altera��es previdenci�rias em 2003. �O PSOL nasceu da luta contra a Reforma na Previd�ncia, um dos maiores ataques do governo Lula aos direitos dos trabalhadores�, explica Valente, lembrando que a aprova��o da PEC (Proposta de Emenda � Constitui��o) representou o primeiro grande racha na legenda do governo.

Na C�mara dos Deputados, a PEC precisava de tr�s quintos do plen�rio para ser aprovada. Nos dois turnos da vota��o, a proposta foi aderida por 357 e 358 deputados � 50 acima dos 308 exigidos constitucionalmente.

Seguran�a jur�dica
Frente � possibilidade de lit�gios jur�dicos envolvendo a Reforma da Previd�ncia, o Congresso Nacional j� ensaia rea��es e pondera��es sobre os efeitos que a impugna��o teria, pondo em risco a �seguran�a jur�dica� do Legislativo. O senador Alvaro Dias, l�der do PSDB na Casa, n�o acredita que a iniciativa seja adequada. �Se houver consist�ncia para uma a��o que vise anular uma ou outra vota��o, � bom que se prepare para anular outras, porque o esquema � o mesmo. N�o creio que teria sucesso qualquer a��o para cancelar a��es, porque ficaria um vazio, uma aus�ncia de legisla��o�, disse em entrevista � Ag�ncia Senado.

O professor Oscar Vilhena tamb�m chama a aten��o para este aspecto. Ele explica que, se o julgamento do mensal�o abrir brecha para impugna��o de uma ou outra medida, seria necess�rio, por consequ�ncia, �desconstituir todos os atos constitutivos do Legislativo nesse per�odo�. O criminalista Thiago Bottino tamb�m teme a enxurrada de a��es que poderiam se aproveitar da brecha jur�dica aberta. �Se um juiz � condenado por corrup��o, todos os casos que ele j� julgou s�o impugnados?�, indaga o professor, fazendo a mesma compara��o da qual se valeu o decano Celso de Mello.

Se esse racioc�nio for consagrado pelo Judici�rio, surgem ainda mais possibilidades de questionamentos. Ficando comprovado que qualquer parlamentar, no exerc�cio de seu mandato, deformou e corrompeu a liturgia do cargo, todos os atos da sua legislatura poderiam ser anulados. O senador federal Dem�stenes Torres (sem partido, ex-DEM-GO), cassado recentemente pelo Senado, � um desses casos. Parlamentar desde 2003, foi membro atuante em diversas comiss�es da Casa � � de sua relatoria o projeto que resultou na Lei da Ficha Limpa. Caso o Judici�rio confirme, com tr�nsito em julgado, que Dem�stenes Torres [foto] corrompeu-se, qualquer ato legislativo de que fez parte em 10 anos no Senado Federal ficaria contaminado e amea�ado pelo �v�cio formal�?

Na contram�o, est� um dos mais formalistas magistrados do Supremo Tribunal: o ministro Marco Aur�lio. �Em direito, o meio justifica o fim e n�o o fim o meio. N�s n�o podemos potencializar a seguran�a jur�dica a ponto de colocar em segundo plano um v�cio�, declarou o ministro � Ag�ncia C�mara, sem antecipar sua posi��o.

Ainda neste ano, STF j� protagonizou �falta de sincronia� com o Poder Legislativo; embate que, para desgosto do ministro Marco Aur�lio, terminou com rendi��o da Corte antes aos reclames de parlamentares. No m�s de mar�o, ao julgar a MP (Medida Provis�ria) que criou o Instituto Chico Mendes, o Supremo declarou inconstitucional a medida, por n�o ter passado pela an�lise de uma comiss�o mista de senadores e deputados � etapa necess�ria e prevista na Constitui��o. No bojo da decis�o, o STF tamb�m estipulou que o Congresso tinha 24 meses para reavaliar todas as MPs aprovadas equivocadamente seguindo o mesmo modelo. A decis�o do Supremo n�o agradou alguns setores do Estado, dando espa�o para diversas reclama��es de autoridades, que lan�aram m�o da preserva��o da �seguran�a jur�dica�. A press�o foi tamanha que, no dia seguinte, o Supremo voltou atr�s e determinou que a decis�o n�o retroagia, e deveria passar a valer somente a partir daquela data. Marco Aur�lio, indignado, teceu duras cr�ticas ao �rabo preso�da Corte. �Toda vez que n�s damos o dito pelo n�o dito, e colocamos em segundo plano a Constitui��o Federal, n�o temos avan�o cultural, temos retrocesso�, comentou o ministro, que n�o participou da sess�o que reformou a senten�a.

[“Poder�amos, mediante peti��o, reabrir o julgamento? A meu ver, n�o. Paga-se um pre�o por viver em democracia”, diz Marco Aur�lio, refor�ando sua inabal�vel cren�a na separa��o dos Poderes]

Ato de of�cio
Oscar Vilhena lembra ainda que, nem para o Supremo, ficou clara e transparente a quest�o de onde houve corrup��o no esquema do mensal�o. Um dos pontos de disc�rdia, por exemplo, � a tese do chamado �ato de of�cio� � na qual, para configurar o crime de corrup��o passiva, seria necess�rio identificar especificamente qual foi o ato que o corrompido ofereceu em troca da propina. Embora alguns ministros rejeitem que a Corte tenha abandonado a tese, nas decis�es proferidas ao longo da A��o Penal 470, parece ter ficado, pelo menos, estabelecido, que o �ato de of�cio� pode ser entendido em um sentido mais gen�rico, como �fornecer apoio ao governo na C�mara�. Como explica Vilhena, o STF �n�o determinou que o ato de of�cio foi aquela vota��o A, B ou C�. Com essa sa�da lateral, o plen�rio n�o imp�s que ficasse determinado em quais projetos houve vota��o viciada, o que pode representar mais um obst�culo para conseguir a anula��o dos projetos na Justi�a.

Fonte: Ultima Inst�ncia/UOL (Por Felipe Amorim)